Ex-presidente da Warner (gravadora Warner Music) um dos nomes mais importantes da indústria fonográfica brasileira dos anos 60 aos 90, conta como é feita a cobrança para execução de música nas rádios e TVs, conhecida como jabá.
Entrevista explosiva ao jornalista Pedro Alexandre Sanches da Folha de São Paulo.
Folha - Na indústria fonográfica, é unânime a afirmação de que não existe jabá no Brasil. É verdade?
André Midani - Não, o jabá existe. Acho que sempre existiu. Não é uma coisa nova, nem particular da indústria fonográfica. É uma coisa universal, acho que desde que o homem começou a existir. Sempre se ouve falar "vamos acabar com a prostituição", "vamos acabar com as drogas", "vamos acabar com o jabá", que é uma corrupção, não é? O mundo nasceu corrupto e acabará um belo dia na miséria da sua corrupção.
Quanto ao mercado musical, o jabá, porquanto eu saiba, já existe desde o século 19, quando o grande astro da música era a ópera. Havia um grande terreno de ensaio dos novos tenores e sopranos que estavam para ser descobertos, em Marselha, na França. Lá, os empresários de novos talentos da época compravam 50, 80, cem lugares dos teatros e davam de graça para as pessoas aplaudirem muito. Era uma forma de jabá. Isso é inerente ao negócio, existe desde o início da música como setor lucrativo.
Quando cheguei no Brasil, em 55, o jabá não existia do jeito que possa ser pensado hoje. Mas havia meios de pressão desde aquela época. Tal como ele é hoje, e em quantidades talvez menores do que agora, o jabá começou, creio, em 70, 71 ou 72.
Eu tinha uma parte grande dos artistas importantes daquela época, então não tinha tanta preocupação. Fazia sucesso no rádio porque os artistas genuinamente faziam sucesso.
Mas num belo dia um colaborador meu chegou dizendo que estava havendo um movimento segundo o qual o pessoal do rádio gostaria que se reconhecessem seus méritos. Ele foi conversar com eles e voltou me dizendo que tínhamos que tomar certo cuidado, porque se havia formado uma rede entre vários programadores importantes de Rio e São Paulo. Eu disse: "O que me importa?".
Tive a precaução de telefonar para alguns artistas e explicar o que estava acontecendo, que eu não estava a fim de entrar naquilo e que estava dando a instrução de não participarmos. Os artistas apoiaram, aplaudiram. Para minha surpresa, uns dias depois a gente saiu de programação.
Midani - Não me lembro direito mais, mas a imagem que tenho é de que os nossos discos de sucessos naquele momento... havia um de Chico Buarque, por exemplo, saíram de programação. Aguentei uma semana, duas semanas. Na terceira não deu mais para aguentar, porque os próprios artistas chegaram dizendo: "Pelo amor de Deus, como vai ficar essa história? A gente está fora do ar". Era uma preocupação legítima deles.
Então foi, creio, a primeira vez que isso aconteceu. Dali por diante houve altos e baixos, e o jabá estava instalado. Tomei uma atitude bastante pragmática, dizendo: se esta é a regra do jogo, lá vou eu com a regra do jogo.
Midani - As regras eram lamentáveis, porque, como em muitas coisas aqui no Brasil, não eram profissionais. Eu tinha vindo em 55 do México, onde o jabá já rolava com grande despudor. Mas lá, um dia, estava eu na sala de um diretor de companhia, competidor meu, e tocou o telefone. Era um jabazeiro (locutor, programador, sei lá), e meu colega disse, com o palavreado mais vulgar: "fiz um compromisso com você de tocar X vezes por dia e você não está tocando, amigo! Ou você toca ou você sai do rádio, porque eu vou lhe colocar para fora!".
No México pelo menos, havia uma regra (ri): "toco cinco vezes por dia, lhe pago tanto e agora você tem que tocar". No Brasil se tentou várias vezes para se negociar isso, de as rádios tocarem o que as gravadoras queriam, o que seria justo dentro desse esquema injusto. Mas aí sempre se deu um jeitinho aqui, outro lá, e o fato é que a indústria perdeu muito rapidamente o controle sobre o que se tocava. Pagava e não sabia se ia tocar.
Minha próxima interferência formal já foi mais tarde, acho que em 78 ou 79, já na Warner. Estava lançando Baby Consuelo e Pepeu Gomes, que como integrantes dos Novos Baianos haviam sido os protegidos e queridos do Chacrinha. De repente recebo a notícia de que o Chacrinha disse que, se não pagássemos, Baby e Pepeu não apareceriam em seu programa. A coisa mais inteligente que achei por bem fazer foi denunciar isso nos jornais. Em termos de companhia, isso me custou caro.
Fui aos jornais, dizendo factualmente que Chacrinha queria cobrar dinheiro para passar os artistas no programa Jabaculê. Isso me custou a adesão à causa do Chacrinha de outros meios de comunicação. Rádios e outros programas de TV passaram a cobrar também.
Agora, como é que a indústria se manifesta nessa história? Vamos dizer que existem cinco importantes companhias na indústria. Várias vezes os presidentes das companhias de discos foram se reunir para tentar chegar a um acordo. Essas coisas acontecem em momentos de crise do mercado ou de crise financeira, quando você vê que o orçamento para o jabá é tão grande que realmente desestabiliza um pouco sua economia interna.
Midani - Gostaria de dar uma porcentagem, mas o conceito de publicidade mudou muito no decorrer dos anos. Na época em que isso começou, a verba publicitária era 5% das vendas, em geral. Na época do Chacrinha, com certeza era alguma coisa como 10%. Até o momento em que eu estava militando, ou seja, até dois anos atrás, os orçamentos publicitários variavam entre 12% e 16%. E na última vez que vi ou ouvi falar de números, entre o jabá que você dava e alguma regalia, podia chegar a representar 70% das verbas de publicidade.
Pensava que se as cinco companhias se levantassem juntas, em um ano, sem grandes prejuízos, botavam as rádios que praticavam jabá fora do mercado.
Então houve decisões, por certos donos de rádio, de dizer: "Tudo bem, mas o dinheiro é meu". Entraram em contato com as companhias de disco e disseram: "A partir de agora quem manda na programação da rádio não é meu programador ou meu disc-jóquei. Sou eu". Passaram acordos que, no início pelo menos, foram acordos comerciais. Aí, sim, era uma relação profissional.
Tutinha, da Jovem Pan, por exemplo, gostava do disco ou não. Se ele não gostasse do disco não pegava acordo financeiro com a companhia, não havia jeito. Já não se pode chamar isso de jabá, é uma relação comercial como outra. Tutinha, pelo menos, era um grande profissional. Não sei como está hoje, mas era. Se não gostava do disco dizia: "Não toco". Se gostava, então se sentava lá para uma negociação. E ele fazia isso de uma forma profissional: "Vou tocar tantas vezes por dia, vou fazer um especial". Armava-se quase que uma operação de marketing genuína.
Aí veio um outro elemento. Até os anos 80, vamos colocar 85 como uma data hipotética, a lucratividade de uma companhia de discos era uma coisa desejada, como em qualquer negócio. Mas me refiro agora às relações entre os presidentes das companhias e as matrizes das multinacionais. Nos anos em que trabalhei na Philips, uma vez por ano ia à Holanda e dizia: "O ano foi assim". Quando muito a cada três meses a gente mandava um relatório. As companhias naquela época eram uma brincadeira gostosa do dono de cada conglomerado.
Na medida em que o mercado de Wall Street começou a encurtar os prazos, os investidores começaram a ficar mais sedentos. Isso impossibilitou aos presidentes dos conglomerados de terem políticas de compaixão com seus negócios. Cada vez Wall Street foi mais nervosa quanto aos resultados semestrais, depois trimestrais, depois mensais. Se dava uma variação, por pequena que fosse, as ações já ficavam nervosas. Dali então a ordem foi: "Dê lucro! E já!". Na medida que isso foi penetrando na indústria fonográfica se instalou uma pressão sobre os dirigentes locais, daqui e do resto do mundo, cada vez mais feroz.
O cara que está sentado aqui recebe telefonemas a cada três dias: "Como é que está esta semana?". Ele pira daqui. É "não quero saber, eu quero os números". Eu estive do outro lado, sei bem como é esse negócio (ri).
uma vez é a Abril, outra vez é outra empresa que está em situação complicada, outra é uma mudança de gerência... Sempre há um acidente que impossibilita a tranquilidade do mercado.
É uma coisa completamente antípoda da minha atitude quanto ao artista. Não vou dizer que tenho razão, mas são estilos absolutamente opostos. Telvez, dentro das minhas loucuras, eu tivesse gostado de dizer: "Vou fazer um artista". Mas eu não tinha capacidade (nem cara de pau) nenhuma de fazer, então nunca me meti nisso. Se há uma pessoa que nem canta muito bem nem canta muito mal, nem tem muita personalidade nem tem pouca personalidade, o que eu vou fazer com ela? Não sei trabalhar assim, nunca foi meu estilo.
A partir do momento em que um falso artista é puramente fabricado, necessariamente o investimento em publicidade e marketing começa a (precisa) tomar uma importância desmedida. (Vendem a alma, a moral, a esposa) (Belo).
No rock dos 80, existiram algumas músicas de Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Titãs e Ultraje a Rigor que furaram o bloqueio natural. Foi uma surpresa. Ficamos com a música "Inútil", do Ultraje, quatro, cinco ou seis meses sem tocar. Um belo dia, começou a tocar. Acho que o rock não sofreu efeitos de jabá para impedi-lo de penetrar. Os programadores devem ter reconhecido o interesse publico, achado que era um sopro novo nas suas programações.
Não me lembro direito de como acabou, levou um tempo. Certamente houve a turma do deixa-disso, amigos comuns, artistas dos quais Chacrinha gostava muito e estavam trabalhando na Warner. Um dia, recebi um recado de que ele gostaria de se reconciliar. Creio que a gente almoçou juntos, ele não tocou no assunto nem eu. (ele fingiu que não houve nada, eu também fingi que não havia nada). Ficou aquela mútua hipocrisia. Chacrinha me convidou ao programa dele para receber um prêmio, as pazes foram feitas e não tinha mais problema, sempre nos consideramos (respeitamos) muito.
Quando comecei a trabalhar nos Estados Unidos, a primeira coisa que recebi em minha mesa foi o chamado livro branco antijaba. Eram diretrizes de como se deve comportar com ética, e eu tinha que assinar que na minha gerência nenhum país que estava ligado a mim em nenhum momento ia fazer práticas de suborno. Lá é lei.
Tudo depende do que você faz com o jabá. Se for colocar o famoso jabá em cima do que poderíamos chamar uma causa nobre, graças a Deus poder convencer as pessoas de tocar uma coisa que é boa. Se era para botar jabá em cima de Raul Seixas, por exemplo, não me lembro bem, mas botei com muito prazer, porque estava convicto que aquele cara era fantástico. Há cores nessa história, não no lado ético, mas do lado empresarial, objetivo.
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